segunda-feira, 7 de julho de 2014

APADRINHAMENTO AFETIVO


Alice Duarte de Bittencourt – Junho de 2014
Uma concreta opção de referência de afeto para crianças e adolescentes com remotas ou inexistentes chances de adoção
Imagine que tu devas listar os grupos dos quais participas diária, semanal ou mensalmente. Em geral, ao solicitar isto para uma platéia, cada pessoa lista de 06 a 07 grupos entre a família, a igreja, os amigos do futebol, da dança, do trabalho e outros.
Imagine agora quantos grupos uma criança ou adolescente que mora em um serviço de acolhimento, que não tem possibilidades de retorno para sua família de origem, muito menos para sua família ampliada, tem. Em geral, os educadores de serviços de acolhimento conseguem listar um ou dois grupos entre colegas de escola e de algum curso extra-escolar que esteja freqüentando.
Imagine agora que tu sejas despedido repentinamente de teu emprego, sem maiores explicações e sem possibilidade de voltar atrás. Uma situação bastante comum e que nos pega desprevenidos. Qual seria o teu Plano A para resolver esta situação? E o Plano B? Certamente terias um Plano C e provavelmente um D. Em geral, as pessoas apontam a família, o marido/esposa, os filhos, os amigos.
Qual é o Plano A ou B de um adolescente que, ao completar 18 anos, precisa se retirar do serviço de acolhimento, sua casa por muitos anos, que o protegeu, auxiliou, garantiu alimento e abrigo? Em geral, o Plano A é retornar para aquela família de origem que o Juizado da Infância e Juventude em parceria com a equipe do serviço sempre disseram que não tinha condições de cuidar dele. Muito provavelmente, ficar nas ruas também seja um dos planos listados. Afinal, não tem referência alguma de afeto ou de alguém a quem recorrer, tem uma parca rede de amigos, colegas. Soma-se a isto sua quase incapacidade de confiar nos adultos em um mundo que o estigmatiza como o “que mora no abrigo” e, portanto, quase um aprendiz de marginal.
Não há aqui nenhum exagero de dramaticidade na situação posta. São situações perfeitamente possíveis de acontecer com qualquer um de nós e parte da realidade deste adolescente.
A trágica diferença é que temos redes familiares e de amizades o suficiente para não ficarmos em desamparo. Ao contrário deste adolescente que ficará solitário, frágil e assustado, pois não basta estar fazendo algum curso, ou estar em estágio remunerado ou emprego, para que esta segurança interna lhe dê confiança e coragem. Aos 18 anos de idade, a maturidade trazida pela vivência e pela segurança de não estarmos sós, não existe.
Humberto Mariotti, médico e psicoterapeuta, diz: “Ninguém faz nada sozinho. Precisamos do outro desde que nascemos: é ele quem confirma nossa existência e a recíproca é verdadeira. Logo, não há desenvolvimento humano sem desenvolvimento interpessoal. Não se vive sem ajuda – e toda a ajuda vem de alguém.”
Se pensarmos que, de fato, vivemos em torno de uma rede de relações familiares e sociais, que nos apoiamos nelas para nossa sobrevivência interna e externa, como podemos admitir que uma política pública que se diz protetiva, pode “desligar” um jovem adolescente, solitário e com uma frágil rede de relações, deste serviço de proteção apenas por que chegou sua data limite de 18 anos?
A ideia simples e singela de apadrinhamento afetivo é a de ter um afilhado/afilhada que mora em um serviço de acolhimento da mesma maneira que temos um afilhado em nossa família.
Se pensarmos em um serviço de acolhimento institucional (antigos abrigos) ou familiar (famílias acolhedoras), se pensarmos no número de crianças/adolescentes acolhidos (máximo de 20), podemos separá-los, grosseiramente, em três categorias:
a) Aqueles que entram no serviço e serão reintegrados à sua família de origem ou ampliada;
b) Aqueles que entram no serviço e serão encaminhados para adoção:
c) Aqueles que entram no serviço, não têm chances de reintegração nem chances de adoção e, portanto, ficarão morando neste local até os 18 anos.
O apadrinhamento afetivo vem para responder como efetivar a garantia de convivência familiar e comunitária, um direito previsto na Lei Federal 8069/90, nosso conhecido Estatuto da Criança e do Adolescente, a este último grupo. Um grupo de crianças e adolescentes que se caracteriza por serem afrodescendentes, por terem deficiências físicas ou mentais, por serem soropositivos, por fazerem parte de grupos de irmãos ou simplesmente por estarem em uma faixa etária “avançada” para se tornarem filhos. Leia-se, a partir de 06 anos de idade. Registra-se que esta idade está ficando cada vez mais variável, pois aos poucos, as pessoas têm vencido este preconceito da idade através de participação nos Grupos de Apoio à Adoção e nos cursos obrigatórios durante o processo de habilitação para adoção. Mas há uma longa jornada a ser feita no combate ao preconceito.
Ter padrinhos e madrinhas afetivos não é uma novidade. Muitos serviços de acolhimento oportunizam experiências deste tipo com grupos de voluntários dentro da instituição.
A questão é que, se esperamos dos padrinhos/madrinhas um compromisso de responsabilidade e afeto que transcenda para além do tempo do acolhimento como um referencial de segurança para o futuro dos afilhados/afilhadas, precisamos organizar este serviço de modo a ser seguro para os guardiões das crianças/adolescentes em acolhimento, para o juizado da infância e juventude enquanto fiscalizador/parceiro, para os padrinhos/madrinhas que vêm como voluntários e, principalmente, para as crianças e adolescentes que precisam ganhar muito com esta relação a ser construída.
Não é aceitável que os serviços de acolhimento façam experiências com os acolhidos submetendo-os a voluntários, em sua maioria com muita vontade de acertar, mas sem a ampla consciência e preparação prévia da responsabilidade que estarão assumindo. Sem esta preparação, eles desistem na primeira dificuldade, se assustam com as reações dos afilhados ou cumprem um calendário de festas como Natal e Dia da Criança.
Ser padrinho/madrinha afetivo não é um ato de benemerência voluntária que esta pessoa fará de vez em quando, em datas especiais, duas a três vezes ao ano.
Estes são os padrinhos/madrinhas que não queremos por uma única razão, destacando dentre tantas outras: as crianças/adolescentes são sujeitos de direitos e, portanto, nunca devem ser submetidos a experiências com pessoas que não estão preparadas para assumirem um compromisso de responsabilidade e seriedade.
Este serviço está previsto no artigo 92, IX, do ECA como “participação de pessoas da comunidade no processo educativo”. E também nas Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes do CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social e CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente onde explicita com clareza a necessidade de um serviço como este ser precedido de preparação dos candidatos através de cadastramento, seleção, preparação e acompanhamento destes padrinhos/madrinhas e afilhados visando que seja uma experiência benéfica para todas as crianças e adolescentes participantes.
Uma rede de parceiros deve ser acionada para a elaboração de todas as etapas do processo de apadrinhamento. As equipes interprofissionais das Varas da Infância e da Juventude e do Ministério Público são os parceiros de primeira ordem para compor esta rede, por serem fiscalizadores dos serviços. O gestor municipal é o responsável pela execução da política pública e não pode furtar-se a participar. Se o gestor municipal avaliar que não pode executar diretamente esta política, que encaminhe um conveniamento com alguma entidade isenta da rede de serviços para esta execução.
É necessário ter-se clareza dos papéis e responsabilidades de todos os parceiros que compõem a rede socioassistencial do município para que cada um cumpra o que lhe é devido por lei. Não podemos esquecer que o SUAS – Sistema Único de Assistência Social é parte da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS desde 2011.
O serviço de acolhimento jamais poderá entrar em um serviço desta envergadura sem a parceria de uma rede de apoio e de debate para uma construção conjunta.
Devem planejar um chamamento público para o cadastramento das pessoas interessadas, entrevistas individuais para esclarecimento da dimensão do compromisso, documentação (a mesma solicitada para habilitação de adoção), oficinas de debate e preparação de diversos assuntos pertinentes como Vínculo Afetivo e Apego, Sexualidade do Ser Humano, Direitos e Responsabilidades dos Parceiros, Como viver com HIV, Pessoas com Deficiência, Redução da Idade Penal: solução ou desresponsabilização, como algumas sugestões.
Cada etapa destas é eliminatória, mas com o detalhe de que as próprias pessoas se auto-eliminam por que vão compreendendo a responsabilidade que assumirão e que provavelmente não era isto o que procuravam.
Aquelas ações pontuais de levar crianças para a sua casa, para o seu Natal, para passeios eventuais não fazem mais parte da política de Assistência Social deste país.
Os serviços de acolhimento estão e estarão infringindo uma lei federal se assim procederem.
Não há mais espaço para o voluntarismo e para ações irresponsáveis dentro das políticas para crianças e adolescentes. Não podemos errar mais. Todas as ações devem ser planejadas, pensadas em conjunto, em rede.
O Apadrinhamento Afetivo para Crianças e Adolescentes com remotas chances de Adoção é uma bela ação de efetivação da garantia ao direito à convivência familiar e comunitária.
Mas, se não bem elaborada, em suas delicadezas e cuidados, melhor não fazê-la.
Alice Duarte de Bittencourt, graduada em Letras, Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas pela FGV/RS e em Direito da Criança e do Adolescente pela Escola do Ministério Público/RS, Coordenadora do Serviço de Apadrinhamento Afetivo do RS por 11 anos e de Famílias Acolhedoras de Porto Alegre por 05 anos, ex-Coordenadora da Política Nacional de Convivência Familiar e Comunitária da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, membro do Comitê de Desenvolvimento de Pesquisas e Projetos do NECA – Associação de Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente de São Paulo.
http://acolhimentoemrede.org.br/apadrinhamento-afetivo-por-alice-bittencourt/

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