segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A CULPA NÃO É DO HABILITADO II


Escrevi sobre esse tema abordando o não fechamento da conta crianças disponíveis X habilitados, já que sempre a culpa é atribuída aos habilitados que têm como perfil criança branca, recém-nascida, saudável e do sexo feminino, esquecendo-se que não é culpa deles o fato de crianças serem acolhidas ainda pequenas e só entrarem no CNA quando praticamente inadotáveis.
O assunto hoje não é esse.
Acompanhei com muita dor e pesar o retorno de uma criança ao acolhimento institucional depois de cerca de 90 dias de convivência familiar com os adotantes.
Os adotantes não estavam preparados para os desafios da adoção tardia, fragilizaram-se e não suportaram as provas e contra provas.
A criança não estava preparada para ter uma família, regras, rotinas.
A dor dessa ruptura, dessa separação foi sentida por todos que participaram desse momento, dessa desconstrução de uma quase família. Os sentimentos foram conturbados, confusos. Todos os envolvidos sentem-se impotentes, fracassados, amputados.
São dores de aborto, aborto emocional e afetivo e nem por isso menos sentido.
Mais uma vez não tenho como separar o que sou, no que me construí, da minha atuação profissional. Seria ótimo apenas acompanhar, tratar dos aspectos burocráticos e desligar o botão ao colocar o pré fora do fórum, mas não consigo funcionar com tal nível de pragmatismo nem tenho como não fazer uma mea culpa.
Então, de quem foram os erros?
Formação do Perfil
O perfil deve ser formado com objetividade e com o apoio técnico da equipe interdisciplinar das varas da infância onde devem ser abordadas as questões atinentes à adoção tardia.
Não se pode privilegiar a diminuição do tempo de espera ao real desejo de paternar e maternar. É preciso ser enfático nas questões a serem enfrentadas em uma adoção tardia. Adoção tardia não é fácil, não é impossível, mas precisa de dedicação, convicção, disponibilidade afetiva e de tempo para o investimento na relação.
A parentalidade não surge em um passe de mágica. Os sinos não tocam, as fadas não rondam a cabeça dos adotantes soltando pó de paciência, amor, determinação. Tudo isso se constrói, mas não com facilidade.
O perfil deve ser real, desejado, não pode partir do imaginário. Não é fácil ser pai e mãe nem de filhos naturais nem de filhos afetivos. Pessoalmente construo a maternidade há mais de 20 anos e não sei, sequer, se cheguei a ser uma boa ou razoável mãe.
Preparação de Habilitandos
Quanto tempo esperamos nossos filhos? 9, 7 meses? Estamos prontos quando nascem ou é sempre uma surpresa? A maternidade não é construída num piscar de olhos, temos que nos adaptar à criança, a seus gostos, sinais, necessidades. Tudo leva tempo. O choro, a cólica, o sono. Em quanto tempo nos construímos como pais?
Assumo que sempre tive medo da minha filha, medo de quebrá-la, sufocá-la, afogá-la. Não foi fácil aprender a lidar com aquele ser frágil, carente, faminto, que passou seus primeiros dias de vida numa UTI neonatal.
Passei 9 longos meses indo uma vez por mês ao médico, realizando exames e recebendo informações de cada estágio da criança.
Passei 9 meses aguardando por aquele momento e me desestabilizei completamente e não consegui exercer a maternidade na plenitude.
Mudando agora para o processo de habilitação. Busca-se formar pais e mães com 3 (três) reuniões de duas horas cada. Obviamente que é impossível, pois, em 6 horas não se aborda nem 5% dos desafios da parentalidade. Desafios sim, pois, como adultos da relação somos chamados ao desafio de exercermos a parentalidade responsável de crianças que foram alijadas da convivência familiar, abusadas físicas e/ou afetivamente, abandonas e que têm histórico de sofrimento, rejeição e dor.
Alguém tem a ilusão de que crianças colocadas em adoção vieram de lares amorosos? Que foram cuidadas? Amadas? Não! São frutos da dor. Todas, até as de mais tenra idade têm história, passado, memórias.
Cruel essa visão? Não, não é cruel, é real, é pungente, despida de fantasias.
Então, existe solução? Sim, existem soluções e perpassam tanto por quem busca a habilitação quanto por quem trabalha na formação de habilitandos.
Quem tem interesse na adoção deve ler sobre adoção, deve se debruçar sobre livros que tratam da adoção nos aspectos jurídicos, psicológicos, sociais. Se optar por adoção tardia deve se debruçar ainda mais sobre o tema.
A habilitação não pode se limitar a 3 encontros mas a 9. 9 meses de continuada discussão sobre o tema onde se buscará aprofundar o conhecimento do tema, compartilhar vivências.
Os grupos de apoio à adoção tardia não devem ser frequentados apenas por quem já realizou esse tipo de adoção, mas, também, por quem pensa em adotar crianças a partir dos 3 anos de idade.
As sugestões são simples e práticas e envolvem todos:
1)    A partir do ajuizamento do pedido de habilitação o requerente deverá participar de, no mínimo, 9 (nove) reuniões em grupos de apoio à adoção antes de confirmar o perfil de adoção que se pleiteia. Enquanto participa dos grupos o processo continua normalmente com a realização dos estudos técnicos, encaminhamento ao Ministério Público, mas a formação do perfil só se daria depois de concluídas as 9 reuniões.
2)    Devem ser recomendadas leituras aos habilitandos, assim como a participação em diversos grupos de apoio à adoção de caráter não obrigatório.
3)    Os habilitandos devem visitar entidades de acolhimento institucional para que conheçam a realidade das crianças e adolescentes acolhidas.
4)    Todo adotante em adoção tardia, com crianças a partir dos 3 anos, deve ser submetido à terapia familiar durante o período de vigência da guarda provisória, com recomendação de manutenção da terapia pós-adoção.
5)    Crianças e adolescentes em acolhimento institucional e disponibilizadas a adoção devem receber orientações sobre adoção, filiação, parentalidade, limites e devem passar por um período de terapia antes da colocação em família substituta.
6)    O acolhimento familiar deve, na forma da lei, ser prioritário, pois, em família a criança/adolescente já se prepara para a inserção em família substituta, vez que sai do acolhimento com a compreensão real da vida em família.
São pontos razoavelmente simples, pois, os grupos de apoio á adoção já trabalham em parceria com o Judiciário em inúmeras comarcas, de forma voluntária e gratuita, na preparação dos habilitandos, na preparação e acompanhamento da adoção tardia e mais recentemente no pós-natal da adoção.
Cabem, portanto, ao judiciário e ao próprio CNJ – Conselho Nacional de Justiça, estreitar essa parceria e enfrentar os problemas que a habilitação ainda apresenta, trabalhando preventivamente para que “retornos” de crianças a situação de institucionalização sejam efetivamente evitados.
É preciso uniformizar os procedimentos de habilitação em todo o país e minha sugestão, baseada em anos de acompanhamento, é que a preparação adotiva siga os moldes do pré-natal biológico, pois, devem existir justificativas além das biológicas para que a gestação se dê em 9 meses. Talvez Darwin tivesse uma boa explicação para esse lapso temporal que me foge a compreensão, mas me leva a crer que tal tempo de preparo é necessário.
Nessa mea culpa também é preciso um maior envolvimento dos técnicos do judiciário. Psicólogos e Assistentes Sociais que devem tomar uma posição mais acolhedora e, ao mesmo tempo, firme com relação à habilitação. Lógico que a adoção visa atender o melhor interesse da criança e que a criança real é aquela institucionalizada, negra, mais velha, com irmãos, mas não se pode – buscando agilizar a adoção – permitir que pessoas não conscientes ou preparadas para a adoção tardia optem por esse perfil. A atuação deve ser mais incisiva, pontual.
Em resumo: erramos todos, mas podemos trabalhar na prevenção do re-abandono, da re-vitimização tanto da criança quando dos “quase pais” que se sentiram inaptos para o exercício da parentalidade. Todos saem perdendo nessa tragédia que, lamentavelmente, aumenta Brasil afora e não será uma mera indenização por danos morais que regularizará a situação: nem a criança/adolescente se sentirá suprida em seus afetos, nem os ex-adotantes se sentirão confortados em indenizar o fracasso.
Não existem vítimas nem culpados, todos são culpados, todos são vitimas.
E, desculpem o trocadilho, mas a culpa só não é das estrelas.
Silvana do Monte Moreira

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Art. 34
§ 1o  A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei.
Art. 50
§ 4o  Sempre que possível e recomendável, a preparação referida no § 3o deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
§ 11.  Enquanto não localizada pessoa ou casal interessado em sua adoção, a criança ou o adolescente, sempre que possível e recomendável, será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de acolhimento familiar.
Art. 87
VII - campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.
Art. 197C
§ 1o  É obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos.
§ 2o  Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da preparação referida no § 1o deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com o apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento familiar ou institucional e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

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