segunda-feira, 11 de agosto de 2014

ANA FOI ADOTADA E DEVOLVIDA DUAS VEZES


10/08/2014
Jornal A Cidade
Daniela Penha
Menina é hiperativa e tem déficit de atenção; aos 9 anos, vive na Turma do Clubinho à espera de uma família

A menina está sempre com os pés descalços e sujos, sinal do quanto anda para lá e para cá, procurando algo para fazer. Senta na cadeira e, em segundos, está colocando as pernas em cima da mesa. Daí, conta a história da sua família. “Você sabia que na casa do meu pai tem tigre e até leão? Eles não sabiam que eu era dona deles e, quando eu contei, ficaram assim”, abre a boca, deixando o queixo cair.
O pai é a maior ilusão de toda a história. Ana (nome fictício) foi tirada da mãe ainda bebê. Usuária de drogas, por mais que quisesse ficar com a menina, não conseguiu deixar o vício. O pai nem mesmo foi identificado. Desde então, ela vive em abrigos. A inquietação que tem aos 9 anos se explica pela hiperatividade e pelo déficit de atenção, tratados com remédios.
Mas os pezinhos que não param de procurar algo também refletem o abandono. Ela já foi adotada e depois devolvida ao abrigo duas vezes. “É trabalho redobrado. Precisamos tirar os traumas dessa criança para que ela se sinta preparada de novo e mostrar que não é culpa dela”, explica a assistente social do acolhimento, Lívia Masson.
Ana não gosta de falar de coisa séria. “Você é psicóloga? Porque parece!”, pergunta, logo após dizer que não queria conversar. Fala apenas do que é bom. “Eu gosto de boneca e de comer. Brigadeiro, chocolate, cocada, bolo...” – ela poderia passar a noite toda enumerando.
Lívia explica que a menina foge do que lhe faz sofrer. “Ela tem medo de criar vínculos novamente e acontecer de novo”, diz. As duas famílias adotantes sabiam da hiperatividade e do déficit de Ana. Ainda assim, decidiram adotá-la.
“Uma família que decide acolher uma criança com problemas precisa de apoio psicológico, respaldo e consciência. Do contrário, não vai estar preparada para uma situação de conflito. É preciso saber o que será enfrentado”, Lívia orienta.
Silvana Basílio, gerente administrativa da Turma do Clubinho, explica que os primeiros dias da adoção podem ser complicados. “As crianças testam a família. Muitas vezes, regridem. Querem chupeta, falam como criança. Querem viver as etapas que foram puladas.”
Ana finge que não está nem aí. “Eu não quero conversar e nem ligo se não tirar foto”. Em poucos minutos, porém, vai mostrando a falta que sente de um colo, de um abraço. Faz um desenho e me entrega – “É para levar para casa”. Quando chega o fim da entrevista, hora de ir embora, ela dá um abraço apertado. “Você pode voltar, tia?”

LIA FOI DEIXADA NO HOSPITAL
Aos 9 meses, Lia (nome fictício) foi levada ao Hospital das Clínicas para cirurgia e não voltou mais para casa. A família deixou a bebê com síndrome de Down e traços de altismos e nunca mais foi buscar.
Ana foi abrigada e as assistentes sociais tentaram retomar os laços familiares. A família levou a criança de volta, mas não durou muito tempo. “Ela estava com vermes, sendo comida pelos bichos, com muitas marcas de maus tratos e muita desnutrição. A gente procura nem saber desse passado. É muito triste”, conta a mãe adotiva, que terá seu nome preservado por medo. Depois que Lia encontrou um novo lar, já estava bem, os pais biológicos tentaram levá-la de volta e, apesar de ter a guarda da menina, a mãe teme.
Lia já tem 21 anos e vive desde os 4 anos com a mãe e a irmã. A irmã era voluntária no Cantinho e se apaixonou pela menina. A mãe não demorou a seguir o mesmo caminho. As três se completam. “Não é caridade. É um sentimento que não se explicar, diz a irmã. “A gente é que saiu ganhando”, complementa a mãe.
Ana desenha durante entrevista ao A Cidade: ela evita criar laços, mas sente falta de contato e colo (Foto: Milena Aurea / A Cidade)
http://www.jornalacidade.com.br/noticias/cidades/NOT,2,2,978142,Ana+foi+adotada+e+devolvida+duas+vezes.aspx

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