quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ADOÇÃO: UM DIREITO QUE NÃO PODE ESPERAR.


22 de outubro de 2014
Maria Berenice Dias
Redação Jornal Estado de Direito
Moisés, Rômulo e Remo são exemplos de que nem sempre mães têm condições ou o desejo de ficar com seus filhos.
A chamada roda dos expostos – que ainda existem em alguns países – sempre foi uma solução prática para evitar que bebês sejam jogados no lixo. Tal acontece quando a mãe precisa preservar o anonimato, não quer que a família saiba do nascimento e não tem ninguém a quem entregar o filho.
De forma cada vez mais intervencionista o Estado acabou se adonando dessas crianças e desrespeita o direito da mulher de não ser mãe, a submetendo a verdadeira lavagem cerebral. Desencadeia-se verdadeira campanha de demonização, influenciada muito de perto pela religião, que sacraliza a maternidade a ponto de se falar em instinto maternal. Como se mulheres fossem bichos, pois só bicho tem instinto. Pelo jeito os homens não, pois nunca se ouviu falar em instinto paternal.
Apesar de comando constitucional impor o dever de assegurar a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar,[1] a chamada Lei da Adoção[2] deformou o ECA, tanto que mereceria ser chamada de Lei contra a Adoção.
Reiteradamente é enfatizado ser a adoção medida excepcional, sendo que onze vezes é feita referência à prioridade da família natural.[3] Assim são impostos enormes e intransponíveis obstáculos para que a mãe não abra mão daquela criança que gestou sem a querer. É necessário o consentimento dela e do pai,[4] que não vale se for levado a feito por escrito[5] e nem antes do nascimento.[6] Os genitores precisam receber de equipe interprofissional orientações e esclarecimentos sobre a irrevogabilidade da adoção.[7] Depois são ouvidos, em audiência, pelo juiz e pelo promotor, os quais devem esgotar os esforços para manutenção da criança com os pais ou com a família natural ou extensa.[8] Mesmo depois de reconhecido judicialmente ser livre a manifestação de vontade, qualquer dos pais pode, até o momento da publicação da sentença de adoção, voltar atrás.[9]
Mesmo indo de encontro ao desejo da mãe – que quer entregar o filho à adoção e não a algum parente – parte o Estado à caça de algum membro da família, insistindo para que acolham a criança, ainda que tal gere situação para lá de precária. Afinal, fica sob a guarda ou da avó ou de algum parente, o que não lhe garante qualquer segurança jurídica. O “guardado” não adquire nenhum direito, quer a alimentos, quer à herança do “guardador”.
Seguindo a peregrinação, é dada preferência à família extensa ou ampliada: parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.[10] Deste modo caberia somente buscar parentes que a criança gosta e revele o desejo de ir residir com ela. Não há qualquer justificativa para ir à busca de parentes longínquos que a criança nunca viu e com os quais jamais conviveu. E, quando aos recém-nascidos, não se pode olvidar que não têm vínculo de convívio e de afeto com ninguém.
Só após incessantes e infrutíferas tentativas é que tem início o demorado processo de destituição do poder familiar. Mais de um laudo psicossocial é realizado, na tentativa de manter o filho com a mãe. Inclusive a Defensoria Pública é orientada a recorrer sempre, até quando os genitores foram citados por edital.
Superadas todas estas etapas é que, finalmente, a criança é incluída no cadastro nacional, a ser confrontado com o cadastro dos adotantes.
Parte-se então à busca de um adotante, o qual para se candidatar à adoção, precisa submeter-se a um verdadeiro rali, que chega a durar mais de ano. O procedimento para a habilitação só tem início com o atendimento a oito requisitos.[11] O expediente é enviado ao Ministério Público que pode requerer diligências e a designação de audiência para a ouvida dos postulantes e de testemunhas.[12] Os candidatos ficam sujeitos a um período de preparação psicossocial e jurídica por equipe técnica do Juizado da Infância e Juventude que deve atuar com o apoio de técnicos responsáveis pela execução de política municipal de garantia do direito à convivência familiar.[13] A equipe interprofissional, precisa elaborar estudo psicossocial para aferir a capacidade e o preparo do candidato ao exercício da paternidade responsável segundo os princípios do ECA.[14] Depois de tudo isso o candidato é inscrito no cadastro, aguardando anos até ser convocado.[15] Ainda assim os candidatos não tem chance de conhecer, sequer ver uma foto ou um vídeo das crianças que podem adotar. A escolha é feita pelos técnicos e acaba acontecendo o que se chama de um encontro às escuras.
É necessário disponibilizar foto e vídeo das crianças abrigadas na rede nacional dos candidatos cadastrados à adoção. A exibição de imagens não afronta nenhum direito, pois há um bem maior em jogo que é dar-lhes a chance de ter um lar. Afinal, basta postar a foto de um cãozinho para que alguém o adote. Sem que se esteja comparando crianças a animais, nada justifica que com elas não ocorra o mesmo. Até porque há grande chance de candidatos escolherem crianças que se afastem do perfil que haviam indicado, como grupo de irmãos, crianças maiores, especiais ou não brancas.
Também é indispensável assegurar a todos os candidatos à adoção o direito de visitar os estabelecimentos em que se encontram abrigadas as crianças e adolescente, e isso em qualquer lugar do país. Surgindo o interesse em alguma criança, mesmo que não esteja ela disponível à adoção, pode lhes ser entregue, ainda que como família substituta.
Não se pode olvidar que, em face do acesso cada vez mais fácil às técnicas de reprodução assistida, ao invés de se submeterem a todas estas exigências e anos de espera, casais estão optando em fazer filhos ao invés de adotá-los, o que só tem aumentada a população de crianças abrigadas.
Enquanto isso, onde está a criança? Depositada em um abrigo, onde perde a primeira e melhor infância, sem chance de ter um lar, uma família. Este verdadeiro limbo persiste por vários e vários anos. E, muitas vezes a criança se torna “inadotável”, feia expressão para rotular quem ninguém quer.
Todos estes entraves se prolongam de tal forma que deixa de ser assegurada a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar, o que é para lá de inconstitucional.
Ora, se o Estado não tem – pois lhe falta vontade política – estrutura e mecanismos eficientes para agilizar o processo de adoção, juízes e promotores devem ter a coragem que tiveram os magistrados das Varas da Execução Criminal. Diante da precariedade dos presídios e a ausência de instalações adequadas para o cumprimento de determinadas penas, simplesmente veem libertando os presos, ao lhes conceder prisão domiciliar. O impacto destas medidas chamou a atenção de todos a ponto de obrigar o Estado a dar melhor atenção às casas prisionais.
O fato é que, como as coisas estão não podem continuar. Está na hora de mudar esta realidade. É necessário eliminar os berçários dos abrigos, os quais devem se tornar simples casas de passagem e não depósitos permanentes de crianças.
Se o Estado não tem condições de cumprir o comando constitucional, que os juízes simplesmente não abriguem recém-nascidos. Manifestando a mãe, perante o juiz, o desejo de abrir mão da maternidade, o filho deve ser entregue, imediatamente após o nascimento, a quem está habilitado à adoção.
O mesmo deve ocorrer quando há denuncia de maus tratos ou abandono. Ouvidos os pais, em sede liminar, o juiz disponibiliza o filho à adoção. Até ser ultimado o processo de destituição do poder familiar, os adotantes assumem a condição família substituta.
Encontrar uma solução rápida é o maior compromisso do Estado com os seus cidadãos de amanhã, que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Crianças só querem ter um lar, alguém para chamar de pai, de mãe. Não podem esperar pela burocracia que, em ao invés de cuidá-las, as desprotege, deixando-as anos encarceradas.
Também é imposto doloroso calvário a quem só tem amor para dar.
Chega de, em nome da Justiça, se cometer tantas injustiças!
[1] CF, art. 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[2] Lei 12.010/2009.
[3] L 12.010/09, art. 1.º, § 1.º e ECA art.19 § 3.º; art. 39, § 1.º, art. 50, § 13, inc. II, art. 92, incs. I e II, art.100, parágrafo único, inc. X e art. 101 §§ 1.º, 4.º, 7.º, 9.º.
[4] ECA, art. 45: A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando.
[5] ECA, 166, § 4º: O consentimento prestado por escrito não terá validade se não for ratificado na audiência a que se refere o § 3o deste artigo.
[6] ECA, art. 166, § 6o: O consentimento somente terá valor se for dado após o nascimento da criança.
[7] ECA, art. 166, § 2º: O consentimento dos titulares do poder familiar será precedido de orientações e esclarecimentos prestados pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, em especial, no caso de adoção, sobre a irrevogabilidade da medida.
[8] ECA, art. 166, § 3º: O consentimento dos titulares do poder familiar será colhido pela autoridade judiciária competente em audiência, presente o Ministério Público, garantida a livre manifestação de vontade e esgotados os esforços para manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa.
[9] ECA, art. 166, § 5º: O consentimento é retratável até a data da publicação da sentença constitutiva da adoção.
[10] ECA, art. 25: Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
[11] ECA, Art. 197-A: Os postulantes à adoção, domiciliados no Brasil, apresentarão petição inicial na qual conste: I – qualificação completa; II – dados familiares; III – cópias autenticadas de certidão de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável; IV – cópias da cédula de identidade e inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas; V – comprovante de renda e domicílio; VI – atestados de sanidade física e mental; VII – certidão de antecedentes criminais; VIII – certidão negativa de distribuição cível.
[12] ECA, art. 197-B: A autoridade judiciária, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, dará vista dos autos ao Ministério Público, que no prazo de 5 (cinco) dias poderá: I – apresentar quesitos a serem respondidos pela equipe interprofissional encarregada de elaborar o estudo técnico a que se refere o art. 197-C desta Lei; II – requerer a designação de audiência para oitiva dos postulantes em juízo e testemunhas; III – requerer a juntada de documentos complementares e a realização de outras diligências que entender necessárias.
[13] ECA, art. 50, § 3º: A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
[14] ECA, art. 197-C: Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios desta Lei.
[15] ECA, art. 197-E: Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis.
Artigo publicado na 43ª edição do Jornal Estado de Direito
Adoção: um direito que não pode esperar.
Maria Berenice Dias: Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do RS; Advogada especializada em Famílias, Sucessões e Direto Homoafetivo; Presidenta da Comissão da Diversidade Federal do Conselho Nacional da OAB; Vice-Presidenta do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito das Famílias
http://estadodedireito.com.br/adocao-um-direito-que-nao-pode-esperar/

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