terça-feira, 14 de outubro de 2014

EX-MORADORES DE ABRIGOS CONTAM COMO SE TORNARAM EXEMPLO PARA JOVENS ABANDONADOS


12/10/2014
Por Marco Moreira
Professor de História que foi menino de rua trabalha na ressocialização de crianças
NITERÓI — O adolescente L.R., de 17 anos, teve uma intensa e meteórica trajetória na vida do crime. Começou com 15 anos, como vapor, e chegou ao cargo de gerente do comércio de drogas onde morava, numa comunidade da Zona Norte da cidade. Na época, faturava num único dia de trabalho mais do que ganha hoje por mês, longe das drogas e das armas, dando expediente como auxiliar de padeiro num mercado em Icaraí.
— Minha condição na boca (de fumo) era portar um fuzil 762 e uma pistola. Eu andava cheio de cordão de ouro e ganhava R$ 700, R$ 800 num dia só. Mas troquei tudo isso para poder dar paz à minha família, ver minhas filhas crescerem e andar sem medo pelas ruas — diz L., que é pai de duas meninas, uma de 2 anos e a outra de 5 meses, que nasceu prematura.
Após sair de sua última internação do Centro de Socioeducação Dom Bosco, o antigo Instituto Padre Severino, na Ilha do Governador, há sete meses, quando cumpriu pena por associação para o tráfico — sua terceira passagem pela polícia —, L.R. agarrou com unhas e dentes a oportunidade de deixar no passado as práticas criminosas.
— Eu saí numa quinta-feira e na segunda já estava trabalhando. Comecei no mercado como repositor, carregando caixas pesadas, subindo e descendo escadas a toda hora. O primeiro salário foi de menos de R$ 90 (após ter descontada a pensão da filha mais velha). Deu vontade de desistir, mas pensei em tudo o que passei na vida do crime. Fiquei internado mais de um ano no Dom Bosco, seis meses no Criaad (Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente, no Barreto). Eu não podia perder essa chance. Eu quero ser um trabalhador, uma pessoa do bem, andar de cabeça erguida, sem medo. Nunca mais quero voltar para o crime — enfatiza o adolescente, que se considera plenamente ressocializado, apesar de pedir para não mostrar o rosto, temendo preconceito.
Assim como L.R., que tenta mirar no futuro e aproveitar ao máximo as oportunidades que a vida lhe ofereceu, encontra-se a jovem Paloma Lima, de 20 anos. Ela vive desde os 5 na casa de acolhimento Lar de Santo Antônio, no Fonseca. Após a morte da mãe num acidente de trânsito, o pai, sem condições criá-la com as outras três meninas, tomou a decisão mais difícil da vida: encaminhou Paloma e uma das irmãs ao orfanato.
— Eu era muito pequena e não lembro nenhum detalhe da minha mãe. Mesmo assim, sonho com ela de vez em quando me abraçando — diz, com as lágrimas escorrendo. — Desculpa, mas a saudade bate muito forte... Isso fica martelando na minha cabeça. Ela é um anjo, sei que está torcendo por mim, onde quer que esteja.
Porém, outras lágrimas também rolam pelo rosto de Paloma, só que de alegria. Com o carinho e o incentivo recebidos durante esses 15 anos na casa de acolhimento, ela conseguiu se formar em técnica administrativa e vai se casar em dezembro. A cerimônia será no orfanato que a criou.
— Eu e meu noivo já havíamos estudado juntos e nos reencontramos numa festa. Começamos a namorar e, anos depois, ele me pediu em noivado, no Parque da Cidade. Falei que o meu sonho era casar e tinha que ser no orfanato. Ele topou, e no dia 13 de dezembro vamos unir nossas vidas diante de Deus. Vai ser lindo, a coisa mais importante da minha vida — suspira a menina.
Paloma diz que, devido ao amor que recebeu das freiras e o consequente estímulo para transformar a sua vida, sai do orfanato de cabeça erguida:
— Foi um aprendizado que valeu muito a pena e valerá por toda a minha vida.
Psicóloga do Lar de Santo Antônio, Andrea Cardoso diz que é recompensador ver a vitória de Paloma:
— Ela está aqui há tanto tempo.... É gratificante vê-la com uma profissão, constituindo família.
SUPORTE PARA ENFRENTAR A VIDA
O permanente e largo sorriso do educador social e professor de História Anderson Damião Costa, de 32 anos, não reflete nem de perto a trajetória amarga de sua infância, vivida, quase toda, perambulando pelas ruas de Niterói, em companhia da mãe, desnorteada pelo alcoolismo. Aos 6 anos ele foi parar na Associação Metodista de Ação Social (Amas), um orfanato no Fonseca. Lá, longe da família, deu início a uma emocionante história de vida, recheada de sucesso e superação.
— Durante um tempo nós moramos na Favela do Sabão, mas meu padrasto não conseguia manter a minha mãe sob controle por causa do problema dela com a bebida e nós íamos sempre parar nas ruas — lembra o professor, que se formou e dá aulas de História, além de trabalhar como educador de crianças na prefeitura. — Minha experiência no abrigo foi muito boa, mas é lógico que eu gostaria de ter tido um lar com a minha mãe, com meu pai, mas não tive. A verdade é essa, não tive. Mas tive a Amas, que me deu todo o suporte de educação, religião e dignidade. Minha criação foi excelente, a ponto de eu estudar, me formar e hoje ser um educador social. Fico feliz de poder ser um espelho para aquelas crianças que estão lá (no orfanato). Quero que elas pensem que, se o Anderson conseguiu vencer na vida, qualquer um consegue. Todos têm essa possibilidade.
Na companhia de Anderson, durante muito tempo na Amas, esteve a jovem Carolina Mota, de 20 anos. Quando criança, Carol, como prefere ser chamada, morava no Colubandê, em São Gonçalo. Ela é a segunda filha de uma família de oito irmãos. Aos 8, ela perdeu a mãe, vítima de um aneurisma, e foi morar com a avó, no Jardim Catarina, no mesmo município. Na nova casa ficou pouco mais de um ano, pois a avó, que não aguentava suas travessuras, a colocou para adoção.
— O início (no orfanato) é difícil para todo mundo. Eu estava acostumada a conviver com meus irmãos e fui vê-los só mais tarde, quando eu já tinha uns 15 anos. Foi difícil essa fase... Eu ficava pensando: “Meu Deus, por que logo a minha mãe foi morrer?” — questionava-se Carol, sem encontrar a resposta.
Na Amas, ela foi crescendo, desfrutando do apoio incondicional das “tias” do abrigo. Assim como Anderson, a menina estudou, recebeu altas doses de carinho que germinaram uma eterna gratidão e ganhou um emprego remunerado no próprio abrigo. Para a menina, morar no orfanato nunca foi motivo de vergonha. Pelo contrário. As dificuldades da vida deram-lhe um amadurecimento valioso e serviram de trampolim para uma vida adulta bem resolvida, cheia de amor, sonhos e esperança.
Diretor da Amas desde setembro, o pastor Paulo Fernando Barros da Silva diz que enfrenta dificuldades financeiras, mas busca novos mantenedores e parceiros para não fechar as portas:
— O trabalho de acolhimento é feito na Amas com muito amor há mais de 20 anos.
Jonanthan do Anjos, vice-presidente do 3º Conselho Tutelar de Niterói, no Fonseca, ressalta que “as casas de acolhimento promovem o resgate da autoestima destas crianças e adolescentes”.
Carol concorda.
— Nunca tive problemas para falar de onde vim. Hoje vejo que valeu o esforço. Sou muito feliz e não sei o que seria de mim se eu não estivesse no abrigo — diz a menina, que ainda mora na Amas e cursa o 6º período de Pedagogia numa faculdade particular da cidade.
Desde os 18 anos, ela trocou a condição de criança acolhida para se tornar, “com muito orgulho”, uma das tias do orfanato:
— Essas crianças precisam de oportunidade.
Véu e grinalda. Paloma mora num orfanato desde pequena e vai casar em dezembro: “saio daqui de cabeça erguida”- Gustavo Stephan / Agência O Globo
Read more: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/ex-moradores-de-abrigos-contam-como-se-tornaram-exemplo-para-jovens-abandonados-14216859#ixzz3Fvw1Z5CG

Nenhum comentário: