segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A proibição da adoção de descendente por ascendente não é absoluta (reprodução)

Publicado por Carlos Eduardo Rios do Amaral

O renomado jurista e Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, em seus votos proferidos nesta Excelsa Corte constitucional sempre nos recordava da necessária distinção entre texto de lei e norma:

“Permito-me, ademais, insistir em que ao interpretarmos/aplicarmos o direito – porque aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação – ao praticarmos essa única operação, isto é, ao interpretarmos/aplicarmos o direito não nos exercitamos no mundo das abstrações, porém trabalhamos com a materialidade mais substancial da realidade. Decidimos não sobre teses, teorias ou doutrinas, mas situações do mundo da vida. Não estamos aqui para prestar contas a Montesquieu ou a Kelsen, porém para vivificarmos o ordenamento, todo ele. Por isso o tomamos na sua totalidade. Não somos meros leitores de seus textos – para o que nos bastaria a alfabetização – mas magistrados que produzem normas, tecendo e recompondo o próprio ordenamento” (Reclamação nº 3.034-2/PB AgR).

Destarte, o juiz não é um garimpeiro de artigos, incisos e alíneas de disposições legais. Não pode o juiz se contentar com a sombra de determinado enunciado de lei que aparentemente refresque sua consciência com o pronto encerramento da lide, voltando suas costas para todo o ordenamento positivo e para a realidade da vida submetida à sua apreciação em cada caso particular. O juiz é o intérprete maior dos textos legais, a produção de normas jurídicas para cada realidade da vida sua vocação sublime indeclinável.

O próprio Nazareno, quando questionado por fariseus, assim interpretou o descanso sabático judaico:

“Qual de vocês, se tiver uma ovelha e ela cair num buraco no sábado, não irá pegá-la e tirá-la de lá? Quanto mais vale um homem do que uma ovelha! Portanto, é permitido fazer o bem no sábado” (Mateus 12).
Pois bem, fixada essas premissas maiores, vejamos o teor do Art. 42, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente:

“§ 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando”.

Assim, pela regra literal deste § 1º, do Art. 42, do ECA, pela sua análise isolada e apartada do restante de todo o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional, os avós, por exemplo, não poderiam jamais adotar seus netos, em qualquer circunstância da vida.

Entretanto, como dito, na análise de cada processo ao juiz não é dado debruçar-se única e exclusivamente sobre a literalidade do disposto no § 1º, do Art. 42, do ECA, para decidir a respeito da validade ou proibição da adoção por ascendentes do adotando.

§ 1º, do Art. 42, do ECA, talvez possa vir a ser o ponto de partida da exegese a ser feita pelo juiz, mas jamais será o seu códice insular para entrega da prestação jurisdicional. Sempre será exigido mais do juiz. A este perito peritores será reclamada a análise do fato da vida submetido à sua apreciação à luz de todo o sistema legislativo vigente – Tratados, Convenções, Constituição e Leis –, para extração da norma aplicável. Por isso, acertadamente, dizemos “juiz de direito” e não “juiz de leis”.

Desse modo, não basta ao Art. 42§ 1º, do ECA, dizer que não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando. É necessário, sim, que diante da análise de cada caso concreto (fato da vida) em cotejo com todo o ordenamento positivo pátrio o juiz obtenha a norma restritiva – e não a lei! – que vede essa pretensão, quando for o caso, quando dita adoção contrariar os interesses superiores do menor.

O Colendo Superior Tribunal de Justiça, intérprete maior e último de toda a legislação infraconstitucional, convocado a analisar a literalidade do Art. 42§ 1, do ECA, frente a todas as demais disposições de nosso vasto e complexo ordenamento positivo, assentou a relatividade do mencionado dispositivo legal. Possibilitando, em determinado caso concreto, que uma avó adotasse seu neto, passando a ser sua mãe.

O Acórdão, da Relatoria do Eminente Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro, recebeu a seguinte ementa:
“ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO C/C DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR MOVIDA PELOS ASCENDENTES QUE JÁ EXERCIAM A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. SENTENÇA E ACÓRDÃO ESTADUAL PELA PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. MÃE BIOLÓGICA ADOTADA AOS OITO ANOS DE IDADE GRÁVIDA DO ADOTANDO. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA DE VIGÊNCIA AO ART. 535 DO CPC. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE OU CONTRADIÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. SUPOSTA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 39, § 1º, 41, 42, §§ 1º E 43, TODOS DA LEI N.º 8.069/90, BEM COMO DO ART. 267, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INEXISTÊNCIA. DISCUSSÃO CENTRADA NA VEDAÇÃO CONSTANTE DO ART. 42, § 1º, DO ECA. COMANDO QUE NÃO MERECE APLICAÇÃO POR DESCUIDAR DA REALIDADE FÁTICA DOS AUTOS.

PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA GARANTIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. ART. 6º DO ECA. INCIDÊNCIA.

INTERPRETAÇÃO DA NORMA FEITA PELO JUIZ NO CASO CONCRETO. POSSIBILIDADE. ADOÇÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.

1. Ausentes os vícios do art. 535, do CPC, rejeitam-se os embargos de declaração.

2. As estruturas familiares estão em constante mutação e para se lidar com elas não bastam somente as leis. É necessário buscar subsídios em diversas áreas, levando-se em conta aspectos individuais de cada situação e os direitos de 3ª Geração.

3. Pais que adotaram uma criança de oito anos de idade, já grávida, em razão de abuso sexual sofrido e, por sua tenríssima idade de mãe, passaram a exercer a paternidade socioafetiva de fato do filho dela, nascido quando contava apenas 9 anos de idade.

4. A vedação da adoção de descendente por ascendente, prevista no art. 42, § 1º, do ECA, visou evitar que o instituto fosse indevidamente utilizado com intuitos meramente patrimoniais ou assistenciais, bem como buscou proteger o adotando em relação a eventual ‘confusão mental e patrimonial’ decorrente da ‘transformação’ dos avós em pais.

5. Realidade diversa do quadro dos autos, porque os avós sempre exerceram e ainda exercem a função de pais do menor, caracterizando típica filiação socioafetiva.

6. Observância do art. 6º do ECA: na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

7. Recurso especial não provido.

(REsp 1448969/SC, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/10/2014, DJe 03/11/2014)”.

Em seu voto, de inegável maestria, cultura e sensibilidade jurídicas, lecionou o Eminente Ministro-Relator:

“Não é tarefa fácil a descoberta da solução que, concretamente, atenda efetivamente aos interesses da criança e do adolescente.

Para tanto, é fundamental que a justiça da Infância e da juventude atue de forma responsável, madura, a partir do caso concreto, sob a ótica interdisciplinar e em respeito e observância aos princípios e parâmetros normativos vigentes, tendo a compreensão que o objetivo primordial de sua intervenção não é a aplicação de medidas, mas sim, em última análise, a proteção integral infanto-juvenil em seu sentido mais amplo.

É inadmissível que a autoridade judiciária se limite a invocar o princípio do superior interesse da criança para depois aplicar medida que não observe sua dignidade.

Partindo-se da premissa do melhor interesse da criança ou adolescente é que terá que ser feita uma leitura conjugada dos arts. 1º e 6º do ECA. Este último estabelece que, em caráter excepcional, o magistrado poderá interpretrar a lei levando em conta os fins sociais a que se destina, bem como o bem-estar geral do adotado”.

Aos eternos estudantes de Direito, a leitura integral do voto do Eminente Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro, nos autos do REsp 1448969/SC, é um verdadeiro deleite imperdível, antológica aula de hermenêutica.

Também merece registro o Acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que decidiu a questão em 2º grau de jurisdição, neste mesmo sentido:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO C⁄C DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR MOVIDA PELOS ASCENDENTES. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA RECURSAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

MÃE BIOLÓGICA QUE FOI ADOTADA PELOS REQUERENTES COM OITO ANOS DE IDADE E GRÁVIDA DO ADOTANDO. RESPONSABILIDADE PELA CRIAÇÃO DO RECÉM-NASCIDO QUE PERTENCEU EXCLUSIVAMENTE AOS REQUERENTES, HAJA VISTA A TENRA IDADE DA GENITORA, VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL. PEDIDO DE ADOÇÃO QUE OBJETIVA CONSOLIDAR SITUAÇÃO FÁTICA JÁ EXISTENTE DESDE O NASCIMENTO DO ADOTANDO QUE, ATUALMENTE, CONTA COM DEZESSEIS ANOS DE IDADE. ADOTANDO QUE RECONHECE OS REQUERENTES COMO PAIS E A MÃE BIOLÓGICA COMO IRMÃ.

VÍNCULOS DE AFINIDADE E AFETIVIDADE DEVIDAMENTE DEMONSTRADOS TANTO PELA PROVA COLHIDA QUANTO PELO ESTUDO SOCIAL REALIZADO. ADOÇÃO QUE CONTA COM A CONCORDÂNCIA EXPRESSA DO ADOTANDO E DA MÃE BIOLÓGICA, CONFORME DEPOIMENTOS PRESTADOS EM JUÍZO. VEDAÇÃO DO ARTIGO 42, § 1º, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE MITIGADA FRENTE AO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. EXEGESE DO ARTIGO 1º, INCISO III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO”.

Da poesia de Aurilene Damaceno, obtém-se o mais amplo conceito e significado de ser mãe:

“Mãe
Mãe não é quem te coloca no mundo…
É quem te cria e te acolhe em seus braços e abraços quando está com medo…
Mãe é quem participa na escola e te aplaude no teatro…
Quem faz teu bolo de aniversário e está ao seu lado quando está doente…
É quem te faz adormecer, e que ao acordar, é a primeira a querer te ver…
Mãe é quem te dá amor, atenção e que ri de qualquer bobagem…
É quem é firme sem perder a ternura…
É quem larga festas, viagens, para cuidar de você…
Mãe é quem te viu crescer e participou da sua vida…
É aquela que fez aviãozinho e te viu dar o primeiro passo, a primeira palavra…
Mãe não é outra coisa além de tudo isso…
É quem cuidou de você quando você mais precisou, a infância…
Mãe não é quem te coloca no mundo e que te registra…

É quem segura sua mão, desde o princípio e não te abandona jamais”.

Pena que muitas de nossas Faculdades de Direito transformaram-se em “Escolas de Legalidade”, verdadeiros cursinhos preparatórios de concursos públicos de provas e títulos. O aluno de Direito, assim, transforma-se num autômato, seu conhecimento obtido não lhe serve para uma reflexão contemporânea, mas, sim, para assinalar a alternativa correta da questão de seu examinador em frias equações jurídicas que raramente lhe desafiam à mitigação do sofrimento humano dos necessitados e enfrentamento da opressão e tirania do mais forte no dia a dia.

De toda sorte, o REsp 1448969/SC, Relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, mantém as coisas em sua devida ordem, mitiga o teor do Art. 42§ 1º, do ECA, enaltecendo a primazia da dignidade da pessoa humana, estabelecendo ao juiz o dever de sempre sopesar esse dispositivo legal frente aos princípios do melhor interesse, prioridade absoluta e proteção integral da criança, diante de cada caso concreto.

Mãe é quem cria! Adeus legalismo! Viva a hermenêutica jurídica! Viva ao amor!
Reproduzido por: Lucas H.

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