segunda-feira, 20 de março de 2017

Após adoção, criança transgênera de 10 anos recebe certidão de nascimento com nome e gênero retificados (Reprodução)

Por Neto Lucon

“Estou muito feliz, mainha, não vou ter mais que fingir nada”, declarou a pequena
Ana Maria Evangelista Salvador, de 10 anos, ao receber neste sábado (18) a sua nova certidão de nascimento no cartório de Mairiporã, interior de São Paulo. É a segunda criança no Brasil a conquistar a retificação do nome e sexo/gênero: femininos.

Ana Maria é uma criança transgênera – foi designada menino ao nascer, mas se identifica com o gênero feminino e é uma menina. Ela estava no abrigo Lar de Maria, de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, e foi adotada pelo professor
Roberto Salvador Jr. e pela pastora, professora e costureira Alexya Evangelista Salvador, que também é uma mulher transgênera.

Os autos da nova certidão foi feita por
Christiana Brito Caribé da Costa Pinto, juíza da Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, após uma audiência com os pais adotivos, a própria Ana Maria e um laudo que atestava a transgeneridade dela.

Com isso, a certidão antiga é automaticamente anulada na cidade de Cabo de Santo Agostinho, onde ela foi registrada inicialmente. Na nova certidão, é preservado o local de nascimento, o dia, o mês, o ano e a hora. E entram a nova filiação (os nomes de Alexya e Roberto), o nome Ana Maria Evangelista Salvador e o sexo feminino.

“Estamos todos felizes. O que me alegra é que minha filha nunca vai saber o que é a transfobia de apresentar um documento que não corresponde ao seu gênero. Sei que não vou conseguir defendê-la das outras transfobias da vida, mas estou em paz em saber que fiz de tudo para ela não passar por essa transfobia”, declarou Alexya, que também é mãe adotiva de
Gabriel, 11 anos.

UMA CRIANÇA TRANSGÊNERA
Após ler uma entrevista de Alexya dizendo que tinha a vontade de adotar uma criança transgênera, a juíza de Jaboatão dos Guararapes entrou em contato com a juíza da Vara da Infância da cidade do Rio de Janeiro, a doutora Mônica Labuto. Ela, por sua vez, contatou a ABRAFH-Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, onde Alexya e Roberto são membros.

A doutora disse que na Comarca em que ela atuava havia uma criança que apresentava uma demanda diferenciada: era designada menino, mas se identificava com o universo feminino, embora não pudesse afirmar nada.


A professora quis conhecer, mas existia um empecilho: Alexya estava no interior de São Paulo e Ana Maria em um abrigo de Pernambuco. No final de agosto, elas foram autorizadas a utilizar da tecnologia para se aproximarem e se conhecerem. E conversavam por meio de vídeos, mensagens e whatzapp. A pedagoga Genilda Rodrigues de Santana foi fundamental nessa aproximação.

“No primeiro contato, deixei que ela falasse o que quisesse e deixei que a vida se encarregasse de colocar as coisas nos seus lugares. Mandava as fotos da família toda, mandava vídeos da gente levando o Gabriel na escola, de eu costurando. Eles também mandavam vídeos da Ana”, conta Alexya, que percebeu que a criança era trans, mas não disse nada até ela mesma se pronunciar.

Ana Maria chorava muito, dizendo estar feliz por ter ganhado uma família: “É choro e emoção”, dizia ela. No abrigo, a criança ficou um ano e meio usando o nome antigo e era vestida como um menino – apesar de dizer a todos que era uma menina constantemente e demonstrar certa agitação. A diretora Maria Salete Rodrigues de Santana escutava a criança e percebia a demanda diferenciada e pedia para que a equipe a ouvisse melhor.

“Mas a equipe, por não saber dessa especificidade, adoeceu a Ana. Ela já veio adoecida por tudo o que passou pela família biológica, e no abrigo também. A Salete era praticamente a única que escutava a Ana e a deixava se vestir pelo menos com fantasias que ela queria”, relata.

SOU MENINA, NÃO MENINO
Em uma semana e meia de conversa, Alexya pediu para que a pedagoga explicasse para a criança que a mãe era uma mulher transgênera. Ana disse: “Não importa o que a minha mainha é. Eu já a amo”. Neste mesmo dia, Ana perguntou se poderia chamá-la de mainha – o que já deixou Alexya toda derretida – e perguntou se poderia contar algo muito pessoal.

“Olha, mainha, eu preciso te contar uma coisa e espero que a senhora não fica triste. Eu não sou um menino, sou uma menina”, disse ela. A mãe respondeu: “Eu já sabia o que você é e não tem nenhum problema nisso. Nós somos iguais”. Ana chorou em Pernambuco, Alexya e o marido no interior de São Paulo.

“Até então eu não usava artigos para falar com a Ana. Era sempre “meu anjo”, “minha criança”. Mas a partir daquele momento foi a libertação da Ana e eu já a chamava de “princesa”. Ao mesmo tempo, ela perguntou qual o nome que eu daria para ela. Eu disse: ‘Tem algum nome que você se identifica? E ela disse que gostaria que eu desse um nome a ela. Desde pequena, eu sempre dizia que quando eu tivesse uma filha, daria o nome da minha mãe. E assim foi feito”, relata Alexya.

A criança agitada que era Ana Maria, passou a ser mais tranquila no abrigo, depois que teve sua identidade de gênero respeitada.

No dia 21 de setembro de 2016, Alexya foi conhecer a filha em Pernambuco. “Foi a coisa mais linda. Naquele momento foi o parto. Eu em lágrima e ela correndo lá do fundo do corredor gritando ‘mainha, mainha’. Eu já tinha uma autorização para dormir no hotel com a Ana e no dia 23 se concretizou a guarda para fins de adoção”. Ana Maria estava usando um vestido e levemente maquiada, assim como a mãe.

JUÍZA SE SENSIBILIZOU

No Fórum, a família conheceu Christiana, e explicou sobre transgeneridade e pediu para que, apesar dos preconceitos sociais, ela ouvisse o relato de Ana Maria. “Era uma juíza que queria entender, mas que até então não sabia muito sobre a questão da transgeneridade, ao mesmo tempo, uma juíza muito humana e receptiva”.

Ao escutar Ana Maria na Vara da Infância e da Juventude, Christiana perguntou se Ana estava feliz. A pequena irradiava felicidade e agradecia a juíza por ter ganhado uma mãe, um pai e um irmão, pois este era o seu sonho: “O tempo todo que ela esteve no abrigo ela pedia para a juíza e sua equipe, uma família. E, claro, uma família que a entendesse”.

Já em Mairiporã, Ana Maria começou a ter acompanhamento no Centro de Referência LGBT de Campinas, com a supervisão da doutora Bárbara Dalcanale Menêses, que durantes esses meses acompanhou Ana Maria em consulta, dando o laudo que se tratava de uma criança transgênera.

“Até então a equipe de Jaboatão dos Guararapes achava que era uma fase, uma curiosidade momentânea. Só que a Ana ficou um ano e meio no abrigo dizendo que era uma menina, e não um menino”. A advogada Cecília Coimbra, que ajudou na adoção do Gabriel, acompanhou o processo. E, por meio desse laudo e da audiência, o Ministério Público entendeu que Ana Maria é de fato uma menina.

VIDA SOCIAL

Em casa, Ana Maria é tratada e respeitada em seu gênero feminino. Na escola, ela também é. “Apenas a equipe gestora da escola sabe que ela é uma criança transgênera, pois quando ela chegou eu levei o decreto estadual, uma lei municipal que protege a dignidade das pessoas trans, que eu propus e foi votada na Câmara Municipal de Mairiporã”, declara.

No diário de sala, o (até então) nome (social) Ana Maria já constava e ela não passava por nenhum constrangimento. Era só mais uma menina dentre tantas outras. “Com a nova certidão, ela não vai em momento algum, precisar implorar para que a pessoa do outro lado do balcão não fale o nome do RG, como eu passo”, diz.

Alexya afirma que sabe que a filha vai sofrer preconceito e que será impossível blindá-la de todas as opressões. “Não só porque ela é transgênera, mas porque ela é pobre, ela é negra, ela é filha de uma mulher transgênera. Então eu sei que minha filha não vai ter uma vida tão tranquila”. Mas luta para que quando Ana Maria se torne uma mulher adulta muitas coisas já tenham mudado.

“Eu digo: ‘filha, você não está no corpo errado. Errada é a sociedade que é doente, hipócrita e preconceituosa. Desde quando ela chegou digo que ela é uma menina saudável, linda, sorridente, inteligente e alegre”, declara Alexya, enquanto a filha pula no ar de alegria ao pegar a nova certidão.

Alexya e Roberto fazem questão de agradecer a Deus pelo que estão vivendo, pois muitas pessoas ajudaram nesse processo da adoção de Ana Maria. A Família, a Igreja da Comunidade Metropolitana onde ela é pastora, a ABRAFH-Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas, o Grupo de apoio à Adoção-Acolher e a equipe de Jaboatão dos Guararapes, na pessoa da Dra Christiana. “Sem vocês, seria impossível o nascimento da nossa filha. Que o Eterno retribua em bênçãos todo o bem que vocês dispensaram à nossa família, Deus os abençoe”.

Original disponível em: https://paraibaonline.com.br/em-jp-juizes-da-infancia-e-juventude-discutem-sobre-o-cadastro-nacional-de-adocao/

Reproduzido por: Lucas H.

Nenhum comentário: