segunda-feira, 6 de março de 2017

Mais de 500 crianças são acolhidas em casas-lares em Mato Grosso (Reprodução)

04/03/2017

A satisfação de anunciar sua profissão ficou evidente pelas expressões corporais e a entonação da voz, que teve elevação do tom e prolongamento das pronúncias: “Sou publicitária. É a primeira pessoa que me pergunta depois que me formei”, responde Ana Regina Rocha Bernardão. A segurança e o desembaraço da jovem de 21 anos em entrevista para falar sobre seu passado não deixam flagrar o que a experiência na infância gravou em sua mente.

Ela integra uma família de quatro pessoas em que seus três irmãos também são adotados.  Seu acolhimento ocorreu aos 7 anos de idade, depois de ter passado por outras três famílias e ter sido devolvida para abrigos públicos por causa do comportamento. “Eu dei muito trabalho, não conseguia me adaptar nas famílias, e elas devolveram porque não conseguiram me levar. Eu ‘testava’ as famílias e elas me desenvolviam e acabei criando a certeza em mim de que não iria ficar com ninguém”, conta.

Ana Regina conviveu com sua mãe biológica até os 5 anos. E até onde consegue se lembrar, ela diz ter visto a mãe chegar embriagada em casa, surrá-la gratuitamente e presenciar relações sexuais de sua mãe com homens diferentes ao lado da sua cama. “Minha mãe era prostituta e chegava em casa bêbada; do nada, me batia, tinha relação sexual do meu lado. Então, eu me via como um empecilho para ela”.

Essa experiência, somada ao sentimento de rejeição, foi desconstruída ao longo dos últimos 15 anos pela família adotiva. “Foi muito amor, muita educação e muita persistência para ser quem sou hoje. Eu  carregava comigo o sentimento de que não iria ficar com ninguém [família]. Mas minha mãe (para ela não há necessidade de especificar a adoção) me deu muito amor, que foi sendo construído ao longo do tempo”.

Esse tipo de história é mais comum do que se imagina. O destino das crianças e adolescentes são as casas-lares distribuídas por Mato Grosso com número de acolhidos flutuante entre 500 e 700. 

No histórico da maioria aparecem pais envolvidos com drogas e ou álcool, que cometem maus-tratos e outros tipos de violência, chegando ao abuso sexual – que também tem crescimento constante nos últimos anos. Conforme o promotor de Infância e Juventude do Ministério Público do Estado (MPE), José Antônio Borges, 80% das crianças e adolescentes veem de lares onde os pais são viciados em bebidas alcoólicas ou em drogas.

“São crianças muito carentes de carinho, sofrem maus-tratos, os pais as deixam sem alimentação, e também sofrem outros tipos de agressões”, diz o promotor.

Casas-lares tentam amenizar impactos da violência

A função das casas-lares é tentar criar um ambiente familiar e amenizar os impactos psicológicos das vítimas. Abrigam crianças por faixa etária com lotação máxima de vinte pessoas, em casos em que irmãos são retirados de casa e permanecem juntos nas casas. Mas o tempo é limitado.

“Conforme a lei [Estatuto da Criança e do Adolescente], o prazo máximo para resolver a situação de uma criança em casa-lar é de 120 dias. Nesse prazo a justiça decide, depois de investigação psicossocial da família, da família extensiva, que inclui avós, tios e outros parentes, para saber se há condições de as crianças voltarem para casa”, explica o promotor José Antônio Borges.
As casas mantêm discrição de residência regular e os acolhidos participam de rotina para qualquer criança em sua idade. “Elas vão para a escola, fazem atividades dentro das casas, tanto de esportes como de integração no cotidiano das casas. O objetivo é criar um ambiente sem afetação para as crianças, que passam também por acompanhamento de psicólogos, de saúde”.
“Busca-se evitar a revitimização da criança. Ela já passou por violência dentro de casa e continuar a ser exposta a ações hostis só piora a sua situação, pois muitas vezes já sofreu violência sexual e chega ao abrigo machucada”, conta um auxiliar de Conselho Tutelar em Cuiabá que preferiu não se identificar.
OAB-MT diz que “mistificação” emperra adoção
A maioria das 61 crianças habilitadas para adoção em Mato Grosso compõe a chamada “idade tardia”, quando elas já ultrapassaram 5 anos de idade. No entanto, a lista de pretendentes à adoção é de 715. O motivo sobre o descompasso é a exigência dos candidatos a pais adotivos de crianças menores de 4 anos. 
Para presidente da Comissão da Infância e da Juventude da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso (OAB-MT), Tatiane de Barros Magalhães, há uma “mistificação cultural” na pretensão de tomar crianças adotadas no país, o que seria motivo, em parte, da demora em encerrar casos.
“As pessoas [na lista por adoção] querem sempre crianças pequenas, com exigência de cor de pele, de um biótipo, que nem sempre corresponde ao próprio biótipo delas. Não deveria ter isso no processo de adoção. Não estamos lidando com mercadoria. São pessoas”, diz.
Segundo ela, o já burocrático trâmite jurídico para aprovação de adoção é dificultado por exigências que não alteram a convivência entre pais e filhos. “Não é porque a criança é pequena ou de uma cor ou outra que não haverá dificuldades de criação. Eles são diferentes de filhos biológicos que também dão dificuldades, às vezes até mais que um adotado”.
A advogada afirma que uma alternativa para “desmistificação” seria a aproximação entre as crianças habilitadas para adoção e os pais pretendentes. Para isso, seria necessário repensar o próprio modelo de casa-lar. “Ninguém pode entrar nas casas-lares, e as crianças que já sofrem agressão por terem sido tiradas de seu lar também são afastadas da sociedade. Entendemos que o modelo atual avançou em comparação com o abrigo, onde mais de 100 crianças ficavam abrigadas, mas ainda não é o ideal”. 

Bebês brancos e saudáveis são os preferidos

Menor de 1 ano de idade, de pele clara, sem problemas de saúde e que não tenha irmãos. Este é o perfil de criança que a maioria dos pretendentes que está na fila de adoção procura. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referentes, há no Brasil cerca de 6 mil crianças aptas para adoção e mais de 33 mil pretendentes, ou seja, para cada criança existem seis adotantes. 
Mas, então, por que grande parte destes meninos e meninas não consegue uma família? Porque o perfil desejado pelos adotantes difere do perfil das crianças aptas a adoção.

Juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e presidente do Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil, Renato Rodovalho Scussel explicou, quando veio a Cuiabá no ano passado, que a maioria das crianças que hoje está na fila de adoção tem mais de 8 anos, entrando na faixa etária da chamada “adoção tardia”. 

“O número de crianças adotadas tardiamente cresceu no Brasil, mas ainda é ínfimo, o que representa hoje menos de 2% das crianças cadastradas. Essa é a nossa realidade. A situação fica ainda mais complexa quando falamos das especiais, que têm problemas de saúde. Nesses casos, a adoção é mais difícil ainda”.

O juiz-auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça de Mato Grosso Luiz Octávio Saboia destacou, na oportunidade, um pouco sobre a experiência bem-sucedida de Mato Grosso, com relação ao curso obrigatório de preparação para os pretendentes da adoção. 

“Depois que participam do curso, os pretendentes começam a entender que não vão adotar uma criança sem história. Antes de ir para a adoção ela já tinha uma história, na maioria das vezes triste, e que não pode ser apagada. Eles passam a compreender também que somos um povo miscigenado, que não é formado apenas por crianças de olhos verdes e cabelos loiros”, frisou.

O magistrado observou que quando enxergam isso passam a perceber que aquela boneca que eles procuram muito provavelmente não existe. “A partir do momento que entendem isso, muitos pretendentes vão ao sistema e mudam o perfil da criança, pois, a partir do curso, passam a ter outra visão dos fatos”.

Crianças acolhidas podem representar superfície de violência

O número de acolhidos em casas-lares de Mato Grosso pode representar somente a superfície das ocorrências de violências contra crianças e adolescentes a partir de parentes ou pessoas próximas às famílias. Em Cuiabá, há hoje 55 crianças alojadas, e a maioria tem idade abaixo dos 12 anos.
“É um número baixo para o proporcional de população de Cuiabá, uma cidade com mais de 500 mil habitantes e o número de crianças em casas-lares não chega a 70. Se compararmos com números de outras cidades, Cuiabá também aparece dentre as que têm uma proporção baixa. Mas, sim, isso pode ser somente parte dos casos que acontecem”, explica o promotor José Antônio Borges.

O motivo para suspeita de maior volume de agressões pode ser tirado do próprio procedimento para entrada de permanência de crianças nas casas-lares. A decisão ocorre por meio de determinação judicial baseada em investigação do Ministério Público e do Conselho Tutelar sobre a situação familiar das vítimas.

As opções mais consideradas são de reintegração das crianças ao núcleo familiar (pai e mãe) e ou da família extensiva, que abarca avós, tios e outros parentes próximos. A permanência nas casas-lares só é utilizada como último recurso de manter a integridade das crianças. O próximo passo é a habilitação para adoção – hoje, o número é de 61.

“A entrada nas casas-lares é de passagem, como determina a lei. A permanência é um último recurso depois de que estiverem esgotadas as possibilidades de retorno da criança para o seio familiar, de onde o agressor ou a agressora podem ser retirados, ou da família extensiva. A intenção não é deixar a criança nas casas-lares”.

Conforme a Secretaria de Segurança Pública (Sesp), 15 crianças foram violentadas por dia em Mato Grosso no ano passado. Em Cuiabá, houve média de três denúncias registradas por dia na Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Deddica) e em 95% dos casos o agressor era da própria família ou próximo à vítima.

Conforme o 6º Conselho Tutelar, somente neste ano cerca de 200 pedidos foram enviados à Secretaria de Educação de Cuiabá para matrícula de crianças em instituições de ensino. Todas são vítimas de algum tipo de violência.

Aplicativo SOS Infância recebe denúncia

O aplicativo “SOS Infância”, idealizado pelo Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil (Fepeti) e lançado pelo governo do Estado de Mato Grosso, foi desenvolvido para viabilizar de forma instantânea as denúncias de violações cometidas contra os direitos da criança e do adolescente em Mato Grosso.

Denúncias de crime praticadas contra menores poderão ser registradas e remetidas com rapidez à “Rede de Proteção”, que investigará e dará providência às ocorrências.

O SOS Infância pode ser baixado gratuitamente por usuários de iOS e na versão para Android. 


Reproduzido por: Lucas H.

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